No dia 8 de junho, a Folha de São Paulo lançou o seu novo podcast investigativo: ‘A Mulher da Casa Abandonada’. A motivação veio do jornalista Chico Felitti, que há meses se questionava sobre a história por trás do casarão centenário, localizado Higienópolis.
Afinal, como ele conta no primeiro episódio do podcast:
Uma mansão. Uma casa de tijolos aparentes que atravessa um quarteirão inteiro. De frente, dá para uma rua; os fundos da casa desembocam em outra rua. Além do imóvel, que tem mais de 20 cômodos, a casa abandonada ainda tem um quintal do tamanho de um campo de futebol, cheio de abacateiros carregados. É um dos últimos terrenos sem prédios em um bairro de São Paulo dominado por edifícios, onde um apartamento de 2 quartos custa R$ 2 milhões. E eu, contaminado pelo espírito incorporador de imóveis que paira sobre São Paulo, via a casa abandonada e só pensava em uma coisa: como é que ainda não levantaram um prédio aqui?
Mas a sua investigação jornalística começou quando, ao passear com a sua cachorra pelas ruas do bairro à noite, se assustou com um rosto que sorria por entre as plantas que cercam a casa abandonada.
Nesta época, ele ainda não sabia que alguém vivia naquela casa. Mas a aparência da mulher aumentou ainda mais a curiosidade.
Aqui, vale ressaltar que Chico Felitti já é um nome conhecido do jornalismo literário. Ele já contou as histórias de grandes personagens da cidade, como Ricardo Côrrea da Silva, conhecido como “Fofão da Augusta”, em seu livro ‘Ricardo e Vânia’. Além disso, é o responsável pela biografia de Elke Maravilha e outros títulos que lhe garantiram prêmios como escritor.
Ou seja, o que começou como uma ideia de descobrir mais sobre a personagem peculiar, que vivia em uma casa abandonada em um dos endereços mais caros da capital, se tornou um caso ainda mais sombrio.
Isso porque, depois de meses ligando o gravador sempre que cruzava com a mulher, só na antevéspera do Natal de 2021 é que ele, finalmente, conseguiu falar com ela.
Em entrevista à Folha, Felitti afirma que esperava descobrir uma pessoa marginalizada e abandonada pela sociedade, uma vítima. Mas a verdade é que o jornalista acabou por descobrir um caso de crime e crueldade que fala muito sobre o Brasil.
A mulher
Na primeira vez em que Chico Felitti conversa com a excêntrica personagem, ela se apresenta como Mari. O que prova-se ser uma mentira.
Afinal, o seu nome é Margarida Maria Vicente de Azevedo Bonetti. E a razão pela qual a moradora da mansão esconde o seu nome verdadeiro é porque ela fugiu dos Estados Unidos, depois de ser acusada pelo FBI de manter uma funcionária em condições análogas à escravidão por 20 anos.
No segundo episódio do podcast, o jornalista descobre que o passado de Margarida Bonetti não é segredo em Higienópolis. Todos sabem o que ela fez:
Todo mundo sabe que a mulher da casa abandonada é uma criminosa foragida. Menos eu. E o resto do Brasil inteiro. E o FBI.
Segundo a investigação, Margarida se mudou aos Estados Unidos em 1979, quando o seu então marido, René Bonetti, recebeu uma proposta de trabalho no país. E a oferta de emprego vinha com casa, passagem e direito a levar um funcionário.
Por isso, quando os dois anunciaram a mudança, os pais de Margarida ofereceram uma empregada doméstica que trabalhava na casa desde que era adolescente.
Sim, parece chocante que alguém ofereça uma pessoa a alguém. Esta foi a vítima que passou 20 anos em condições análogas à escravidão.
Foi assim que o jornalista viajou aos Estados Unidos, com a intenção de descobrir como Margarida acabou em uma casa caindo aos pedaços, em pleno 2022, sem nunca ter cumprido pena pelo crime que cometeu.
O Caso
Depois de 20 anos de agressões, sem receber salário e direito à cuidados de saúde, a vítima foi libertada.
Não foi fácil e nem se deve resumir em poucas linhas. Na altura, a emprega doméstica tinha um tumor do tamanho de um melão crescendo em seu abdômen e os Bonetti se recusavam a levá-la ao médico.
Quando o casal voltou ao Brasil para um período de férias, a senhora foi deixada na casa. Foi então que, com a ajuda de uma vizinha, o FBI iniciou uma investigação.
No terceiro episódio da série, Chico explica como aconteceu:
Depois de semanas de investigação, o FBI decidiu entrar na casa da família Bonetti. Como a empregada estava lá, não precisavam de mandato. Então, Vic (a vizinha) convenceu a brasileira a deixar os policiais entrarem, e mostrar como vivia. Ela relutou, mas acabou permitindo.
Depois de resgatada, a ex-empregada passou dois anos escondida, enquanto o casal foi envolvido na investigação:
No começo dos anos 2000, o inquérito virou um processo, e a informação de que um casal rico estava sendo acusado de escravizar uma pessoa em Gaithersburg veio a público.
É neste momento que Margarida Bonetti conseguiu sair dos Estados Unidos em setembro de 1998, quando o seu pai faleceu. Como eles ainda não tinham sido indiciados, ela escapou.
René foi condenado a seis anos à prisão, além de multas para o Estado e a vítima. Mas a mulher voltou para a casa dos pais, a casa onde cresceu e onde vive até hoje. A Casa Abandonada.
E como uma pessoa, acusada de cometer um dos crimes mais impensáveis, continua livre?
A história de Margarida Bonetti resume a elite brasileira que se mantém dona de privilégios que resistem ao tempo e aos erros. Isso porque, a mulher é filha do Doutor Geraldo Vicente de Azevedo. E se o seu nome não diz muito nos dias de hoje, não significa que não tenha sido uma das figuras mais influentes da cidade.
Afinal, o pai de Margarida era filho de Francisco de Paula Vicente de Azevedo, mais conhecido como Barão de Bocaina. Um dos barões do café mais importantes do início do século XX, acumulou posses e influência suficientes para três gerações.
A mansão
A casa abandonada é um dos casarões tradicionais que permanecem de pé em São Paulo.
Construída em 1930, o imóvel está na rua Piauí, próximo à praça Vilaboim.
De acordo com o podcast,
O imóvel tem três andares e 24 janelas e é tão famoso que tem até nome próprio: a casa foi batizada com o nome de um médico famoso, pai da mulher que hoje mora nela. Originalmente, tinha vitrais com imagens náuticas, como barcos e mares revoltos. A casa é uma sobrevivente. A única que resta na rua, de pelo menos 20 que caíram para dar lugar aos prédios que estão lá hoje.
Os pais de Margarida, Doutor Geraldo Vicente de Azevedo e Maria de Lourdes Danso Vicente de Azevedo, moraram no casarão que já viveu dias melhores. Depois da morte do médico em 1998, Maria de Lourdes morou com Margarida até 2011, ano de seu falecimento.
Desdobramentos e hype atual
No quinto episódio do podcast, Chico Felitti faz uma pausa nos desdobramentos do caso dos Bonetti para falar sobre o mais importante segundo ele:
Casos de pessoas mantidas em situação análoga à escravidão, como o narrado nesse podcast, chocam, mas infelizmente não são raros.
A verdade é que situações como essa são apenas um sintoma de uma sociedade baseada em séculos de exploração e escravização da população negra. E, é claro, que este fato faz com que mulheres negras sejam ainda hoje vistas como mão de obra do trabalho doméstico.
Apesar da intenção de descobrir a história por trás de um casarão abandonado, Felitti esbarrou no caso dos Bonetti. E seria impossível abordar a história da mulher da casa abandonada, sem falar sobre a escravidão dos tempos atuais.
Em entrevista ao Splash, da UOL, Chico Felitti afirmou que não se incomoda com o sucesso do podcast – que começou quando jovens do Tik Tok descobriram o caso – mas se preocupa que a escravidão moderna não seja levado a sério.
A minha preocupação é que a mensagem fique clara. Tem um assunto ali sendo discutido. Que não seja a estética pela estética. O esvaziamento daquilo. Estamos falando de uma coisa que ainda acontece muito no Brasil e que a gente pode mudar.
A boa notícia é que, na mesma entrevista, o autor afirmou que logo após o quinto episódio estrear, no dia 6 de julho, mais de mil denúncias de situação de exploração foram feitas. Pode ser coincidência, mas pode não ser.
Você pode conferir toda a história no podcast: